A doença de Gaucher é uma doença de depósito lisossomal, caracterizada pelo acúmulo de glucosilceramida nas células do sistema macrófago/monócito. É decorrente da deficiência hereditária da enzima lisossomal β−glicosidase ácida. Existem três subtipos clínicos, todos herdados com caráter autossômico recessivo. O tipo 1, ou tipo adulto, é o mais comum. Os tipos 2 e 3 ou, respectivamente, formas infantil e juvenil, são mais raros e cursam com comprometimento neurológico (formas neuronopáticas). O tipo 1 é a doença de estoque lisossomal mais comum e a doença genética mais prevalente entre judeus Ashkenazi, com uma incidência de aproximadamente 1/1.000 e freqüência de portador de 1 em 16 a 1 em 18.
A gravidade clínica em geral se relaciona com a quantidade residual da enzima. O achado em medula óssea ou outros tecidos de células de Gaucher, macrófago com depósito lipídico intracitoplasmático e que apresenta citoplasma com aspecto de papel amassado, sugere o diagnóstico.
O acúmulo de glucosilceramida na medula óssea, fígado e baço leva à pancitopenia e à acentuada hepatoesplenomegalia. Acometimento ósseo leva ao afinamento da córtex medular, fraturas patológicas, dor óssea, infartos ósseos e osteopenia. A maioria dos pacientes apresenta sinais radiológicos de envolvimento ósseo, sendo comum deformidade do fêmur, com aspecto de frasco de Erlenmeyer, decorrente da expansão medular e de remodelamento do fêmur distal devido ao acúmulo de histiócitos.
O diagnóstico da doença de Gaucher atualmente requer a demonstração de diminuição da atividade da enzima β−glicosidase ácida em leucócitos ou em cultura de fibroblastos. O estudo genético com a identificação da mutação no gene da β−glicosidase, localizado no cromossomo 1q21, pode também ser realizado e deve ser oferecido aos familiares dos pacientes.
No passado, o tratamento da doença de Gaucher incluía transfusões de sangue para a correção da anemia, esplenectomia, além de analgésicos e procedimentos ortopédicos corretivos.
O tratamento atual para o tipo 1 consiste na reposição periódica da enzima β−glicosidase recombinante. A maioria das alterações extra-esqueléticas pode reverter com o tratamento de reposição enzimática, que também melhora as dores ósseas e estabiliza a doença óssea. Para os tipos 2 e 3 da doença de Gaucher não há ainda terapêutica adequada.
Relato de caso:
Criança de três anos e seis meses, sexo masculino, branco, natural e procedente de Uberlândia, atendido no Ambulatório de Pediatria do Hospital de Clínicas da UFU em 2007, com história de anemia e esplenomegalia há dois anos e oito meses, episódios de icterícia intermitentes e edema facial matutino esporádico (sic).
A criança foi internada aos dez meses com quadro de pneumonia comunitária, e observou-se, nessa ocasião, anemia e esplenomegalia, investigadas posteriormente por diversos serviços médicos sem definição diagnóstica. Houve uso crônico de sulfato ferroso para tratamento da anemia, sem sucesso. O teste de triagem metabólica não revelou alterações. Havia história familiar de parentes de segundo grau com anemia de etiologia não definida e colelitíase, sendo os pais não consanguíneos.
Ao exame físico apresentava mucosas hipocoradas; sopro sistólico em focos mitral e tricúspide sem frêmito ou irradiação; baço palpável a 7cm do rebordo costal esquerdo de consistência endurecida; fígado palpável a 2cm do rebordo costal direito, de consistência fibroelástica, indolor à palpação; crescimento pôndero-estatural adequado para idade; e exame neurológico sem alterações. Exames laboratoriais evidenciaram anemia normocítica e normocrômica (Hemoglobina: 11,5g/dL; VCM: 77,9fL; HCM: 25,9pg) e plaquetopenia (106.000/mm3). Leucograma, reticulócitos, perfil do ferro, eletroforese de hemoglobina, Coombs direto, pesquisa de microesferócitos, curva de fragilidade osmótica, avaliação das funções hepática renal e tireoidiana sem alterações. Sorologias para toxoplasmose, HIV, hepatite e citomegalovírus negativas. A ultrassonografia abdominal confirmou esplenomegalia moderada.
Após esses exames foi realizado mielograma, que constatou infiltração medular por células compatíveis com a morfologia das células de Gaucher. O teste enzimático (dosagem de BGA) em leucócitos e em papel de filtro foi realizado, e o resultado confirmou o diagnóstico de DG. Após o diagnóstico, exames foram realizados para verificar acometimento sistêmico. As radiografias de tórax, coluna cervical, torácica e lombar foram normais. A avaliação neurológica não evidenciou alteração. O aconselhamento genético familiar e a terapia de reposição enzimática com imiglucerase foram solicitados, além de acompanhamento ambulatorial do paciente pela Pediatria, Neurologia e Hematologia.
Referências:
FERREIRA, C.S. et al. Doença de Gaucher - uma desordem subdiagnosticada. Rev. Paul. Pediatr. SP, 2011.
FONSECA, G.H.H. e SILVEIRA, P.A.A. Doença de Gaucher. Einstein, 2007.
Phelipe Gabriel
acadêmico de medicina
presidente da LAPAT